04/07/2017

Templo, Tenda, Teimosia

“Somos povo em travessia, no deserto a caminhar...”
          
  A diocese de Lages, há alguns meses, vive um tempo de travessia. Em sua meditação quaresmal, Dom Nelson exortou os padres reunidos no dia 28 de março: “é hora de fazer a travessia na diocese...ouvir o que o Espírito diz à igreja que está em Lages”.  Lembrou-nos que “a travessia não é fácil...há sombras que nos amedrontam”. Neste tempo, devemos decidir entre o “murmurar” e o “fazer acontecer”, pois “a travessia exige mudança, renovação, novos métodos e novas estruturas”.
            Dom Oneres percorreu conosco esta travessia por longos anos. Mesmo depois de ter sido feito “emérito”, ainda era lembrado pelo povo simples de nossas comunidades como o “nosso bispo”. A sabedoria dos pequeninos sabe que “nosso” é muito mais que “emérito”. Entre as luzes e sombras do caminho, Dom Oneres partiu para outras veredas no dia 27 de junho. Não por acaso, no mesmo dia em que Irmã Jandira Bettoni fazia sua travessia pascal, há 23 anos. No mesmo dia 27 de junho, em 1984, um grave acidente na avenida Cará, interrompia mais um dia de missão daquela que escolheu como lema de vida: “O caminho é você caminhando” e construiu esse caminho junto às pessoas mais empobrecidas da região serrana. Oneres, padre, foi aprendiz neste caminho com Jandira, a equipe de coordenação diocesana de pastoral, as irmãs Franciscanas do Apostolado Paroquial (IFAP), @s agentes da Comissão Pastoral da Terra (CPT), as famílias atingidas pelas barragens, @s militantes do Movimento dos Trabalhador@s Sem Terra (MST) e do Movimento de Mulheres Camponesas (MMC).

            Mas Oneres também era bispo, e bispo antes do papa Francisco. Fruto de sua época, escolheu como lema de seu ministério: “Prepara caminho seguro”. Em geral, os bispos apreciam mais a “segurança” dos Templos do que a “insegurança” das Tendas. Assim, Oneres dedicou 40 dos seus 84 anos de vida a preparar caminho seguro... provavelmente nem ele, nem nós conseguiremos. E isso não significa fracasso ou negligência. É simplesmente o reconhecimento de nossa condição humana: somos gente de travessia. E nesta travessia não nos falta a graça de Deus, sempre “primeireando” (como ensina Francisco!) a nossa fraqueza humana.
Desde o batismo, Oneres era também João, nome de origem hebraica que significa “a graça e a misericórdia de Deus”. De João Guimarães Rosa, poeta de Grande Sertão Veredas, aprendemos que "A coisa não está nem na partida nem na chegada, mas na travessia”, no livro dos Atos dos Apóstolos, Saulo é orientado pelo sumo sacerdote “a fim de levar presos para Jerusalém todos os homens e mulheres que encontrasse seguindo o Caminho” (At 9,2)e, no evangelho da comunidade de João ouvimos de Jesus: “Eu sou o Caminho” (Jo 14,6). No mesmo evangelho, Jesus adverte Simão Pedro (de quem os bispos recebem a sucessão apostólica!): “Eu garanto a você: quando você era mais jovem, você colocava o cinto e ia para onde queria. Quando você ficar mais velho, estenderá as suas mãos, e outro colocará o cinto em você e o levará para onde você não quer ir” (Jo 21, 18).
Em 1950, o jovem João Oneres, com apenas 16 anos, “colocou o cinto”, arrumou as malas e saiu de Carazinho (RS), fazendo a travessia do Rio Pelotas para iniciar seu caminho vocacional no recém construído seminário diocesano de Lages. Segundo ele mesmo gostava de contar, não conhecia ainda a região serrana de Santa Catarina, apenas ouvira falar muitas vezes na infância dos seus campos verdes recortados por taipas feitas de chocolate.  Na manhã do dia 29 de junho, festa de Pedro Apóstolo, este sucessor dos apóstolos com 84 anos, não tinha mais condições físicas para “colocar o cinto”. Outros o levaram do interior da catedral, o Templo onde seu corpo havia sido velado desde a noite do dia 27, para a sombra de uma frágil Tenda montada na praça para a celebração.
Os bancos da catedral, que estiveram quase sempre lotados durante 36 horas de velório, agora estavam vazios. Na praça da catedral, não havia tantas pessoas como se esperava. Sobre a discreta urna de angelim que abrigava seu corpo, nenhum enfeite. Somente uma bíblia cujas folhas brincavam com a brisa suave da manhã de inverno. No seu corpo enrijecido pela morte, fazia-se carne a palavra da carta aos Hebreus: “Jesus sofreu sua paixão fora de Jerusalém, quando purificou o povo com o seu próprio sangue. Portanto, saiamos também do recinto sagrado para ir ao encontro de Jesus, carregando a humilhação dele. Pois nós não temos aqui a pátria definitiva, mas buscamos a pátria futura” (Hb 13, 12-14). No seu corpo desejoso de ressurreição, fazia eco a palavra do apóstolo Paulo, também festejado no dia 29 de junho: “Nós sabemos: quando a nossa morada terrestre, a nossa tenda for desfeita, receberemos de Deus uma habitação no céu, uma casa eterna não construída por mãos humanas” (2Cor 5,1).
Na sombra de uma frágil Tenda, na rua, fora da Catedral, o templo construído com rochas sólidas e seguras, celebramos a despedida e a ação de graças pela vida de Dom Oneres, na manhã ensolarada do dia 29 de junho. O corpo daquele que dedicou-se a preparar caminho seguro, estava agora na sombra insegura de uma Tenda. Entre a Tenda e o Templo, a imagem da Teimosia: a árvore do pinheiro araucária em pé de testemunho, teimando em sobreviver entre os prédios do centro da cidade. Neste tempo de travessia na diocese de Lages, estes podem ser os nossos “três Ts”, a exemplo daqueles que Francisco propôs para animar as lutas dos movimentos sociais: Terra, Trabalho e Teto.
Para nós, os “padres do Karú”, e para o “povo da terra da árvore do povo livre”, que Oneres aprendeu a ser Dom nestes 68 anos de travessia, este é um sacramento de teimosa esperança. O pinheiro araucária nos convida a fazer a travessia deste tempo rigoroso e prolongado de “inverno eclesial”, com as raízes fincadas no chão da vida da nossa gente, buscando a seiva nas periferias mais improváveis; com os “nós” unidos ao tronco que é Jesus e com os galhos-braços irmanados em luta e prece a tant@s outr@s irmãs e irmãos de travessia, com @s quais somos povo serrano: “Dá-nos, Senhor, um pastor sem as frescuras dos príncipes e sem as manias dos lobos. Dá-nos, Senhor, um pastor com cheiro de ovelhas!”
Pe. Roberto Moreira - Pároco da Paróquia Sagrada Família
                

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Grata pela sua participação!